A PGR mostra que Bolsonaro tentou um golpe.
O trecho mais forte da denúncia contra o ex-presidente não envolve o 8 de janeiro. O foco deveria ser nas duas primeiras semanas de dezembro, quando uma tentativa de golpe certamente foi consumada.

Nesta terça-feira (18), a Procuradoria-Geral da República (PGR) ofereceu denúncia contra Jair Bolsonaro (PL) e outras 33 pessoas. Desde o início das investigações sobre a tentativa de golpe pela Polícia Federal (PF), a defesa do ex-presidente adotou um discurso jurídico sólido para além da alegação de inocência: alguns dos fatos narrados até poderiam ser verdadeiros, mas nunca foram suficientes para constituir uma “tentativa” de golpe. A lei penal brasileira não pune os chamados “atos preparatórios”, que são algo diferente de tentar um crime – ou seja, iniciar a execução sem chegar ao resultado por circunstâncias alheias à vontade do agente (artigo 14 do Código Penal). No entanto, um trecho da peça acusatória apresentada pela PGR deixa pouca margem para dúvida que Bolsonaro efetivamente tentou um golpe em dezembro de 2022, desenhando inclusive uma linha do tempo fundamental.
A discussão penal
Antes de comentá-la, vale falar um pouco de Direito Penal. Considera-se que um crime tem três fases: cogitação, preparação e execução. O ato de desenhar um plano e debatê-lo com outras pessoas não passa da primeira etapa. Mobilizar agentes, dividir tarefas e dar início ao monitoramento para uma atividade criminosa são atos preparatórios, ultrapassando o terreno da cogitação. Contudo, atos preparatórios não são puníveis. Isso, aliás, é um argumento forte à disposição das defesas envolvidas com o caso do “Punhal Verde e Amarelo”, cujo objetivo era sequestrar o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF). Os militares envolvidos chegaram a se posicionar em pontos estratégicos e passaram dias vigiando o seu alvo, compartilhando todas as informações de localização num grupo de mensagens. Mas, na data que a atitude mais drástica seria tomada, a operação foi abortada de última hora. Fácil argumentar que não se deu início à execução. Só estavam de tocaia.
A fronteira entre atos preparatórios e executórios – definindo o que significa “iniciar a execução”, no linguajar do artigo 14 do Código Penal – é um pouco nebulosa. Ainda mais para esses tipos penais que possuem um núcleo inédito no ordenamento jurídico brasileiro: os delitos contra a democracia – previstos nos artigos 359-L e 359-M, do Código Penal, por força da Lei 14.197/21 – usam o verbo “tentar” para configurar a consumação do crime. O objetivo do legislador ao redigir as normais penais é óbvio: quem tenta abolir o Estado Democrático de Direito ou depor o governo legitimamente constituído e tem sucesso na empreitada jamais seria julgado pelo novo regime. Portanto, é necessário criminalizar a mera tentativa. Mas como auferir se alguém começou uma tentativa de golpe? Deu início a ela?
Muitos criminalistas voltam para o artigo 14, que fala em dar início à execução, para dizer que a coisa toda é bastante simples: uma tentativa se configura quando um tipo começa a ser executado. Só que num homicídio tentado, por exemplo, um ato de execução que se coincidisse com a ação típica – “matar alguém” – não seria tentativa, e sim um delito consumado. Uma leitura mais refinada da teoria penal sugere então adicionar elementos materiais à discussão. Se uma ação colocou o bem jurídico tutelado – no caso de tentar um golpe, a democracia – em perigo concreto, tem-se um exemplo de ato executório. Sendo assim, para usar o exemplo do homicídio, se o direito à vida de uma pessoa foi efetivamente posto em risco por uma ação que tinha a intenção de provocar o resultado morte, a modalidade ultrapassou a fronteira que divide atos preparatórios de executórios.
Esse debate é fundamental para os crimes imputados ao ex-presidente Bolsonaro. O artigo 359-L (abolição violenta do Estado Democrático de Direito) foi redigido da seguinte forma: “Tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais”. Já o artigo 359-M, que define golpe de Estado, define a conduta típica de maneira similar: “Tentar depor, por meio de violência ou grave ameaça, o governo legitimamente constituído”. A pergunta que fica, tanto para leigos quanto para operadores do Direito, é se esses crimes só aconteceriam caso houvesse “emprego de violência ou grave ameaça”, um dos meios exigidos pelo tipo. A questão é que se uma ação que com certeza levaria a violência ou grave ameaça foi tomada, colocando intencionalmente em perigo existencial concreto o bem jurídico tutelado – a democracia –, então houve sim crime tentado. O desenrolar natural dos eventos depois dessa ação, que só não teve prosseguimento por circunstâncias alheias à vontade do agente, acarretaria tanques, ameaças, violência e uma mudança de regime.
Uma denúncia não precisa trazer provas, apenas indícios suficientes de materialidade e autoria para dar início a uma ação penal. Ainda assim, a denúncia da PGR contém um trecho muito convincente sobre a existência de provas suficientes que Bolsonaro tentou dar um golpe, a partir de uma ação que inevitavelmente levaria ao emprego de violência ou grave ameaça, e que ficou a apenas um “sim” de abolir o Estado Democrático de Direito, cancelando as eleições presidenciais de 2022. O limite entre atos preparatórios e atos executórios foi finalmente cruzado no dia 14 de dezembro de 2022, quando o presidente convidou, por meio do seu ministro da Defesa, os comandantes das Forças Armadas a dar um golpe de Estado.
A linha do tempo
Em dezembro de 2022, com a proximidade da posse de Lula e após um mês de protestos de bolsonaristas pedindo intervenção militar, o Governo Bolsonaro decide tomar medidas concretas para tentar romper com a ordem constitucional. No dia 6 de dezembro, segundo o relato da colaboração premiada de Mauro Cid, que na época era ajudante de ordens da Presidência da República, Filipe Martins – assessor no mesmo gabinete – entregou ao Bolsonaro uma minuta de decreto golpista. O texto apontava supostas interferências do Poder Judiciário no Poder Executivo e decretava novas eleições. Além disso, definia a prisão de algumas autoridades, como os ministros do STF Alexandre de Moraes e Gilmar Mendes, além do então presidente do Congresso Nacional, o senador Rodrigo Pacheco. Ainda de acordo com Cid, Bolsonaro alterou o texto da minuta, envolvendo-se diretamente com ele, para que somente Alexandre de Moraes fosse preso e apenas as eleições presidenciais fossem refeitas.
No dia 7 de dezembro, Bolsonaro fez uma reunião no Palácio da Alvorada com o comandante do Exército, general Freire Gomes; o comandante da Marinha, almirante Almir Garnier; e o general e ministro da Defesa Paulo Sérgio Nogueira. Cid relata que, primeiro, Filipe Martins foi convidado a ler em voz alta o texto da minuta. Depois, o assessor teria se retirado, deixando apenas o presidente e os militares de alta patente sozinhos. Quem confirma tudo isso, dos presentes à dinâmica do encontro? O general Freire Gomes, que também depôs à Polícia Federal (PF). O comandante do Exército diz ter informado o Bolsonaro “que o Exército não participaria na implementação desses institutos jurídicos visando reverter o processo eleitoral”. O presidente teria respondido dizendo que o documento ainda estava sendo estudado, se comprometendo a reportar a evolução aos comandantes.
Outros elementos de prova, para além da colaboração premiada de Mauro Cid e a corroboração de Freire Gomes, fortalecem a narrativa da acusação. Primeiro, uma foto do decreto foi encontrada no celular do delator. Embora as disposições finais do documento tenham sido propositalmente tapadas na imagem, a última parte legível da minuta – após discorrer sobre medidas consideradas “ilegítimas” por parte do Judiciário – termina assim: “[D]eclaro o Estado de Sítio: e, como ato contínuo, decreto Operação de Garantia da Lei e da Ordem”. O arquivo encontrado no telefone do ajudante de ordens do presidente foi mostrado a Freire Gomes, que confirmou se tratar do documento lido no encontro com o presidente do dia 7 de dezembro.
Além disso, os registros de entrada e saída do portão principal do Palácio da Alvorada confirmam a presença de todos esses nomes. Mauro Cid chegou às 7h11; Paulo Sérgio Nogueira às 8h25; e os outros três entraram no prédio às 8h34. Por fim, uma troca de mensagens de Mauro Cid e o general Mário Fernandes naquela data, recuperada do sistema de armazenamento em nuvem do ajudante de ordens, faz referência a uma reunião importante e à necessidade de coragem. Com dois relatos, as imagens, os zaps e os registros do portão, a PGR amarra tudo direitinho.
(Um parêntesis se faz necessário. Bolsonaristas tentam minimizar tudo isso com base em duas narrativas. A primeira é que um estado de exceção teria que ser aprovado pelo Congresso Nacional. Embora teoricamente verdade, está óbvio, inclusive na busca por comandantes militares, que os trâmites constitucionais não interessavam ninguém. Eles queriam é dar uma aparência de legalidade para o autogolpe de Bolsonaro.
Em 2021, o presidente da Tunísia fez exatamente isso: fechou o Parlamento e o Conselho Judicial Supremo invocando o artigo 80 da Constituição de 2014, que dava poderes extraordinários ao chefe de Estado caso as instituições, a segurança nacional ou a independência do país estivessem ameaçadas. No entanto, o dispositivo também previa que o Legislativo deveria continuar permanentemente em sessão, não autorizando a sua suspensão. Kais Saied se esqueceu da segunda parte. Há outros exemplos. Uma lei marcial – equivalente ao estado de sítio no ordenamento jurídico brasileiro – começou uma ditadura de 14 anos nas Filipinas e acabou de ser usada pelo presidente da Coreia do Sul numa tentativa de autogolpe, por exemplo. Golpes frequentemente buscam uma fachada de constitucionalidade.
Além disso, bolsonaristas nas redes sociais disseram que era o único golpe da história para realizar eleições “auditáveis”. Outra mentira. Quase todo golpe promete uma nova eleição. Os militares brasileiros, em 1964, prometiam um pleito presidencial em 1965 – ele só aconteceu em 1989. Além disso, eleições podem ser manipuladas. Por fim, em 2021, o governo civil de Myanmar foi deposto por um golpe. Adivinha o motivo dado pelo Exército? Alegaram que as eleições de 2020, vencidas por Aung San Suu Kyi, tinham sido fraudadas. Eles prometeram pleitos livres e justos ao fim do estado de emergência, o que nunca ocorreu. Hoje, uma junta militar segue no comando do país).
Retome-se a linha do tempo.
Nos dias posteriores à reunião, Bolsonaro se ocupou de tentar fazer o decreto ser mais palatável. Era essencial para o projeto golpista dar certo que o Freire Gomes topasse participar da aventura golpista. Mas ele também tenta um plano B, evidenciando o intuito de ruptura. No dia 9 de dezembro, após ter uma reunião – confirmada pelos registros de entrada e saída do portão do Palácio da Alvorada – com os assessores Marcelo Câmara e Filipe Martins, além do general Braga Netto – candidato a vice da sua chapa presidencial em 2022 e ex-ministro da Defesa –, o presidente decide procurar o apoio de outros integrantes do Alto Comando do Exército. Nesse sentido, ele agendou uma reunião com o General Estevam Theóphilo, que era o comandante do Comando de Operações Terrestres (COTER). O COTER “é o órgão do Exército encarregado de orientar e coordenar o emprego das forças terrestres”, ao qual o Comando de Operações Especiais (COPESP) está subordinado, que tem tropas à sua disposição, como o 1º Batalhão de Forças Especiais.
Uma fonte dessas informações que torna o relato mais fidedigno é que elas estão presentes num áudio enviado por Mauro Cid a Freire Gomes no próprio dia 9, recuperado do seu celular. Na gravação, o ajudante de ordens disse o seguinte: “O presidente tem recebido várias pressões para tomar uma medida mais, mais pesada onde ele vai, obviamente, utilizando as forças, né? (...) É hoje o que que ele fez hoje de manhã? Ele enxugou o decreto, né? Aqueles considerandos que o senhor viu e enxugou o decreto, fez um decreto muito mais, é, resumido, né? E o que ele comentou de falar com o general Theóphilo? Na verdade, ele quer conversar”. Mauro Cid marcou a reunião com o Theóphilo para o fim daquela tarde. Pouco antes do encontro, Bolsonaro, animado com a possibilidade de uma ruptura, quebrou o silêncio e fez um discurso golpista para os seus apoiadores. “Todos nós sabemos o que aconteceu ao longo desses quatro anos, ao longo do período eleitoral e o que foi anunciado pelo TSE (...) Quem decide o meu futuro, pra onde eu vou são vocês! Quem decide para onde vai as Forças Armadas são vocês!”.
Pois bem. Naquele dia 9, o general Theóphilo esteve no Palácio da Alvorada entre 18h25 e 19h18. Enquanto o encontro acontecia, Mauro Cid trocou mensagens de texto com um amigo tenente-coronel, que pedia informações sobre a chance de golpe: “vai ou não vai?”. O ajudante de ordens respondeu, às 18h57, informando que a reunião não tinha acabado ainda, embora complementando assim: “mas ele quer fazer... Desde que o Pr [Presidente da República] assine”. Indagado sobre um possível apoio de Freire Gomes pouco depois, Cid respondeu que era “difícil ainda”. Diante da lamentação do amigo, contemporizou: “[D]ia a dia... passo a passo. Já esteve pior”.
Dos dias 10 a 13 de dezembro, o plano golpista continuava a todo vapor. De acordo com os depoimentos prestados pelos comandantes do Exército e da Aeronáutica, houve encontros com a presença de Anderson Torres, na época ministro da Justiça, em que foi debatida a utilização de instrumentos como Garantia da Lei e da Ordem (GLO) e Estado de Defesa – com a consultoria jurídica de Torres. Até que chega-se ao gran finale. A última das tentativas, quando um pedido indecoroso é feito e o ato executório de uma tentativa de golpe é finalmente posto em prática de modo cristalino.
Na data de 14 de dezembro, a mando do presidente, o general Paulo Sérgio, ministro da Defesa, se reuniu com os três comandantes das Forças Armadas: Freire Gomes, do Exército; Almir Garnier, da Marinha; e Baptista Júnior, da Aeronáutica. Segundo Cid, o ministro tinha ficado encarregado de apresentar a nova versão do decreto golpista. Nessa reunião, os comandantes das três armas foram convidados a participar de uma intervenção militar, bastando para isso apoiar aquele texto. O que torna a narrativa da PGR especialmente poderosa é que ela encontra amparo em outros dois depoimentos para além da delação premiada: os comandantes do Exército e da Aeronáutica confirmaram à Polícia Federal que um decreto foi apresentado e que ele significaria que o Lula (PT), presidente eleito, não tomaria posse caso o instrumento fosse para frente. E o pior de tudo: o comandante da Marinha topou.
Os relatos dos comandantes divergem um pouco nos detalhes. Baptista Júnior diz que perguntou ao ministro da Defesa se o decreto previa “a não assunção do cargo pelo novo presidente eleito”. Ao ouvir como resposta o silêncio, que interpretou como uma confirmação, ele diz que se recusou a receber o documento, enfatizou que a Aeronáutica não se envolveria num golpe de Estado, e se retirou da sala. De acordo com ele, Freire Gomes também teria se negado a saber os detalhes da minuta. Já o próprio comandante do Exército tem uma visão diferente, dando detalhes do projeto de decreto. Ele era mais abrangente que o do dia 7 de dezembro, prevendo a criação de uma “Comissão de Regularidade Eleitoral” para intervir no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e apurar a “conformidade e legalidade do processo eleitoral”. A Comissão seria composta majoritariamente por representantes do Ministério da Defesa, além do presidente da República. Essa minuta foi apreendida na casa de Anderson Torres. Quando confrontado com o documento encontrado na casa do ex-ministro, Freire Gomes confirmou que era o mesmo que lhe foi apresentado. Isso tudo dá solidez aos achados da investigação.
O crime
Não é exagero dizer que o Brasil esteve a somente um passo de um golpe. Se naquele dia 14 de dezembro o general Freire Gomes tivesse dito “sim” ao ministro da Defesa, um plano golpista – desenhado com participação ativa de Bolsonaro, que se envolveu na redação dos decretos – seria posto em prática, terminando com a posse de Lula sendo impedida mediante violência ou grave ameaça pelos setores do Exército mobilizados pelo comandante. Não é possível menosprezar o papel do presidente da República. Quando o comandante-em-chefe das Forças Armadas propõe uma ruptura aos comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, o peso dessa atitude, com contornos institucionais, vai muito além de um mero convite. O único motivo para o país não ter visto uma ruptura acontecer se deve à recusa de Freire Gomes, tenha sido ela motivada por um pragmatismo realista ou por princípios legalistas. Se a única conclusão lógica de um aceite seria a concretização de uma ruptura, resta evidente que o bem jurídico tutelado pelos tipos penais do artigo 359-L e do artigo 359-M, a democracia, estava sob risco concreto.
A PGR percebeu isso. E, graças a todos os relatos que se confirmam, tem um caso muito forte contra Bolsonaro. Vale abrir aspas para a denúncia que foi oferecida na noite de terça, que é inspirada: “Se tantas outras evidências não bastassem, tem-se nessa busca de apoio à insurreição das mais altas autoridades militares de cada uma das Forças indisputável caracterização de tentativa de golpe. Quando um Presidente da República, que é a autoridade suprema das Forças Armadas (art. 142, caput, da Constituição) reúne a cúpula dessas Forças para expor planejamento minuciosamente concebido para romper com a ordem constitucional, tem-se ato de insurreição em curso, apenas ainda não consumado em toda a sua potencialidade danosa. O mesmo se dá quando, como aconteceu, o Ministro da Defesa expõe plano de golpe às três maiores autoridades militares das Forças Armadas, não para dar conta de providências imediatas de repressão contra o proponente do crime, mas para deles obter adesão. A situação mais se agravava, uma vez que um dos Comandantes militares, o da Marinha, se dispôs a acudir ao chamado”. Bingo, Paulo Gonet. Bingo.