O tempora, o mores!
Um pequeno texto de lamentação sobre o estado do mundo, escrito por quem acabou de assistir a cerimônia de posse de Donald Trump.
Assistindo à posse de Donald Trump nos Estados Unidos, repeti a mim mesmo: “Que tempos”. E acabei lembrando de uma passagem muito famosa de um discurso de Cícero dentro do Senado Romano: “O tempora, o mores!” (“Ó tempo, ó costumes!”). Naquela ocasião, em 63 a.C, o orador lamentava a degeneração de Roma, poucos depois da conspiração fracassada de Lúcio Sérgio Catilina para derrubar a República. Mais especificamente, ele reclamava que Catilina ainda não havia sido punido, apesar das evidências de que tentara um golpe: “O Senado entende essas coisas, o Cônsul as vê; ainda assim, esse homem continua vivo. Ele vive? De fato, ele até entra no Senado, participa dos debates públicos, observa e marca com seus olhos cada um de nós para o abate!”.
É uma referência que poucas vezes pode fazer tanto sentido quanto hoje: o Senado Americano celebra o retorno ao poder de quem tentou acabar com a democracia no país. Ninguém deveria minimizar o evento de 6 de janeiro de 2021 fingindo que não foi exatamente isso: uma tentativa frustrada de acabar com o regime democrático nos Estados Unidos. O intuito dos revoltosos, insuflados por Trump em discurso, era anular o resultado da eleição presidencial de 2020. Não houve punição alguma para o líder golpista, que agora, não só livre e solto como na posição de homem mais poderoso do mundo, prometeu começar o governo anistiando todos os criminosos que invadiram o Capitólio. Aliás, para trabalhar na Casa Branca ou nessa administração, desconfiar – ao menos em público – dos resultados oficiais do pleito de 2020 foi um pré-requisito. É um regime de homens leais.
O discurso de posse inteiro foi um show de horrores. Além desse compromisso, ele também foi aplaudido ao anunciar medidas como eliminar todos os programas de diversidade e inclusão governamentais ou ao falar que só existem dois gêneros, buscando atacar os transexuais. Trump ainda fez um discurso expansionista, dizendo que tomaria de volta o Canal do Panamá – e todos lembram que, no início deste mês, o presidente se recusou a descartar o uso de força militar para atingir esse objetivo. Até o imperialismo à moda antiga, com ameaças de violência, voltou à tona. Agora, acho que vai ser difícil ver um movimento nacionalista de direita no mundo sem essa retórica expansionista, que voltou a estar autorizada. Até a Dinamarca ele vem atacando, falando sobre transformar a Groenlândia num estado americano.
O que também retornou ao cenário mundial foi a saudação romana – o gesto fascista que os nazistas também incorporaram na Alemanha Nazista. O responsável por esse momento foi Elon Musk, ao dizer que o seu coração estava com os apoiadores republicanos. O movimento dos braços do bilionário foi inconfundível, a ponto do extremista de direita e machista por profissão Andrew Tate – que Musk pareceu defender que se candidate a primeiro-ministro do Reino Unido – dizer que todo mundo deveria começar a fazer a saudação nazista mesmo, assim como ele tinha começado a ser racista todos os dias para deixar de virar notícia.
É essa gente que está no poder hoje. E com mais força do que nunca. Não falo aqui só das maiorias na Câmara, no Senado e na Suprema Corte. Em todo o seu primeiro mandato, Trump jamais desfrutou do nível de apoio institucional que tem para o segundo. Dessa vez, por exemplo, o empresariado está com ele. Isso foi bem exemplificado hoje mesmo, com Mark Zuckerberg (CEO da Meta), Tim Cook (CEO da Apple), Sundar Pichai (CEO da Google) e Jeff Bezos (fundador da Amazon) comparecendo à cerimônia de posse – e ficando sentados, ao lado do próprio Musk, à frente dos políticos que foram nomeados ministros. Até Bill Gates, fundador da Microsoft que sempre foi ligado à esquerda americana, jantou com o presidente pouco antes da posse e, elogiando, disse ter ficado “francamente impressionado”. Essas notícias todas seriam impensáveis em 2017, mas não são em 2025.
Difícil não suspirar, assim como Cícero, ao ver o estado atual das coisas: “Ó tempo, ó costumes”. O mundo está atravessando o momento mais deplorável do século XXI, e eu acho que ainda tem espaço para piorar. Primeiro, no plano mundial, vemos uma combinação potencialmente explosiva: o nacionalismo expansionista, que o discurso político tradicional voltou a aceitar, e o desrespeito cotidiano ao Direito Internacional – basta ver o massacre que foi feito na Palestina ou a invasão da Ucrânia. Já pensando no plano doméstico dos Estados Unidos, os planos de deportação em massa têm potencial destrutivo para os direitos humanos, para ficar em apenas um exemplo. Ainda haverá tempo para pensar no que pode ser feito contra todas essas situações. Para tentar evitar uma tragédia. No que o Brasil tem feito de diferente, e no que o Brasil não pode fazer igual. Mas, por enquanto, só nos resta lamentar pela era que a humanidade atravessa.
Além do nada menos que claro anúncio do fim do mundo, quando ele enfatiza que extinguirá as regulações ambientais, sairá do Acordo de Paris e explorará combustíveis fósseis de maneira eufórica, jogando o máximo possível de CO2 na atmosfera. Há muito tempo a Morte em pessoa não ocupava um cargo tão alto de forma tão explícita, desavergonhada...