Pé-de-Meia: acertos e falhas do carro-chefe da Educação de Lula.
Mesmo elogiado como símbolo da boa gestão Camilo Santana, o programa ainda pede ajustes finos para converter gasto público em verdadeira transformação social.
Quando o governo Lula foi anunciado, ainda em 2022, alguns políticos escolhidos foram considerados potenciais sucessores do presidente pela imprensa especializada. Um dos nomes mais promissores do PT ficou com o Ministério da Educação (MEC): Camilo Santana. A escolha pelo ex-governador do Ceará, que ainda é relativamente jovem (56 anos), representou a chegada da experiência de política pública de educação primária mais bem-sucedida do Brasil – desenvolvida na cidade de Sobral – ao estágio nacional. Hoje, podemos dizer que a inovação mais marcante deste terceiro mandato veio da pasta de Camilo: o programa Pé-de-Meia, que busca prevenir a evasão escolar por meio da distribuição de bolsas de estudo para estudantes de ensino médio. Embora seja uma boa ideia, vale se atentar ao desenho desta política. É possível dizer que a ausência de mais condicionantes e focalização pode fazer com que a maior vitória do ministro comprometa todos os outros esforços da sua pasta.
Em primeiro lugar, vale explicar o programa em si. O Pé-de-Meia consiste em uma política de incentivo financeiro-educacional para estudantes do Ensino Médio. Foram considerados elegíveis para o benefício os jovens que integram famílias inscritas no Cadastro Único para Programas Sociais (CadÚnico) e estejam matriculados no Ensino Médio das redes públicas, em todas as modalidades, com idade entre 14 e 24 anos, ou no Educação de Jovens e Adultos (EJA), para aqueles entre 19 e 24 anos. Há quatro incentivos financeiros previstos na legislação: o incentivo matrícula, que prevê o pagamento de R$ 200 anuais, depositados no início do ano letivo, desde que o estudante efetive sua matrícula; o incentivo frequência, com o pagamento de pagamento anual de R$ 1.800,00 – depositados em nove parcelas mensais de R$ 200,00 – para os estudantes que atinjam uma frequência escolar mínima de 80%; o incentivo conclusão, segundo o qual cada aluno deve receber R$1.000,00 anuais, depositados no início do ano letivo subsequente, desde que o estudante tenha sido aprovado na série anterior; e o incentivo ENEM, que se refere ao pagamento de pagamento de uma parcela única de R$200 para os estudantes que se inscreverem e participarem dos dois dias do vestibular.
Além disso, o Pé-de-Meia prevê que um estudante poderá ser desligado em caso de evasão, abandono ou reprovação por duas vezes consecutivas ou pelo período de dois anos. Nessa situação, o estudante ficará sem o valor acumulado do incentivo de conclusão referente ao ano letivo. Se ele repetir um ano que abandonou ou no qual foi reprovado, terá direito somente aos incentivos de matrícula e de frequência desse período, não recebendo o incentivo de conclusão correspondente.
Vale dizer que estou usando como fonte um excelente relatório do Todos pela Educação sobre o projeto – várias das informações foram extraídas de lá e parte da minha opinião foi inspirada pela análise que o grupo fez neste texto.
Há muitos elogios ao projeto lá. O Pé-de-Meia segue as melhores evidências ao combinar pagamentos mensais – que aliviam pressões financeiras imediatas e tornam mais “caro” faltar às aulas – com depósitos anuais vinculados à aprovação e a uma poupança acessível apenas após a conclusão do ensino médio. Essa engenharia financeira, testada com sucesso em experiências nacionais e internacionais, eleva tanto a frequência como as taxas de conclusão, ao mesmo tempo que reforça o senso de autonomia porque o dinheiro é depositado diretamente na conta do estudante, sem intermediação de responsáveis. Além disso, as condicionalidades – como a de frequência – são positivas. No geral, aponta-se na direção correta.
O Projeto de Lei nº54/2021, de autoria da Deputada Tabata Amaral (PSB/SP), deixa clara a inspiração do Pé-de-Meia: o Programa Renda Melhor Jovem (RMJ) do Estado do Rio de Janeiro, parte da iniciativa Rio Sem Miséria, Lei nº 6.088/2011, do então governador Sérgio Cabral. Isso se deve ao fato de que essa política foi analisada por uma tese de doutorado premiada do economista Vitor Pereira (hoje, professor da UFRJ), segundo a qual a evasão escolar foi reduzida em 36% devido aos incentivos financeiros. O RMJ oferecia incentivos de R$ 700, R$ 900 e R$ 1000 pela aprovação, respectivamente, no 1º, 2º e 3º ano do Ensino Médio. Além disso, na minha opinião importantemente, havia um bônus extra de R$ 500 pelo bom desempenho no ENEM. Esses valores eram depositados em uma conta-poupança no nome do estudante, que podia sacar até 30% a cada ano; o restante ficava reservado para ser resgatado apenas na conclusão do curso.
Portanto, o desenho nacional é um pouco diferente – a começar pela ausência de bônus por desempenho. Ganhar dinheiro somente para fazer a prova do ENEM – independentemente de como – parece um incentivo mal desenhado. O ideal seria oferecer algum bônus por desempenho para os vestibulandos. O Todos pela Educação chega a sugerir como possibilidade, por exemplo, a nota mínima de 450 pontos – que, antes, era a marca que um estudante precisava atingir para obter um certificado de conclusão do Ensino Médio. É uma alternativa razoável. Seria uma maneira de incentivar que os estudantes tivessem maior dedicação na realização do exame.
Crucialmente, havia ainda uma diferença no que tange a elegibilidade para o programa. Os alunos aptos a participar do RMJ eram aqueles cuja renda preditiva familiar não ultrapasse R$ 100 ao mês per capita e ainda era sujeito a outras condições. No fim, somente 18% dos alunos do estado eram elegíveis ao benefício. Era, portanto, mais focalizado do que o Pé-de-Meia. A versão nacional do programa é quase universal, uma vez que integrar o CadÚnico é o único requisito de admissibilidade. Esse cadastro, hoje, abrange cerca de 40 % dos domicílios. Dessa forma, é possível dizer que o Pé-de-Meia distribui recursos também a famílias que não dependem do salário do estudante para fechar as contas. Uma calibragem simples seria manter o CadÚnico como porta de entrada, mas condicionar o valor cheio à comprovação de vínculo laboral ou busca ativa de emprego, garantindo que o dinheiro substitua, de fato, a necessidade de trabalho precoce.
Outro ponto fundamental, que o Todos pela Educação explora com clareza, é que a lei que criou o Pé-de-Meia havia previsto que a matrícula em escola de tempo integral poderia ser um outro critério de elegibilidade. No entanto, o decreto de regulamentação preferiu deixou esse ponto de fora. Com isso, o incentivo mensal de R$ 200 acaba tratando da mesma forma estudantes que ficam quatro horas na escola e aqueles que permanecem oito, desperdiçando a chance de impulsionar o modelo pedagógico com os melhores efeitos sobre a aprendizagem no Brasil. Teria sido fundamental, dado que 33 % dos ingressantes que não optam pela escola integral o fazem por razões ligadas ao trabalho. Pesquisas mostram que 20 % querem autonomia financeira, ao passo que 13 % precisam ajudar a família. Entre os jovens do quintil mais pobre que estudam e trabalham, a renda média já alcança R$ 436 por mês, valor superior ao benefício oferecido pelo programa. Vincular o bônus a matrículas integrais, e ampliar o valor para esses casos, ajudaria justamente quem tem de escolher entre sala de aula e renda. O ideal talvez fosse focalizar o programa para o público que realmente precisa do dinheiro – os 13% que têm a necessidade.
Por que isso é tão importante? Em virtude do impacto fiscal. O gasto anual, inicialmente estimado em R$ 7,1 bilhões, já foi revisto para R$ 12,5 bilhões – um acréscimo de 76 % em poucos meses. Somado ao complemento federal do Novo Fundeb (R$ 56,5 bilhões), cerca de 34 % do orçamento do MEC – fixado em R$ 200,5 bilhões na Lei Orçamentária Anual de 2025 – acaba consumido. Isso sem contar as muitas outras despesas obrigatórias com as quais a pasta precisa arcar. Programas estruturantes, como o Compromisso Nacional Criança Alfabetizada, com R$ 2 bilhões diluídos em quatro anos, ficam espremidos.
Principalmente porque o Tribunal de Contas da União (TCU) tomou uma decisão que dificultou o planejamento ministerial. Inicialmente, tinham feito uma engenharia legislativa para que o Pé-de-Meia fosse pago por fora da estrutura do Ministério. O TCU impediu a manobra, bloqueando R$ 6 bilhões do programa e exigindo que todas as despesas sejam necessariamente executadas dentro do orçamento do MEC. A alegação de violação das normas fiscais animou a oposição, que começou até a falar em impeachment do presidente Lula por pedalada fiscal, e a questão logo foi resolvida. A decisão retirou a margem de manobra do ministério: aquilo que antes ficaria “por fora” agora disputa limite de gasto com universidades, formação docente e manutenção de escolas.
É uma pena, porque o MEC está fazendo um trabalhando louvável sob a batuta de Camilo Santana – e, sem espaço orçamentário, não haverá a mesma possibilidade de avançar projetos relevantes, como a prioridade de alfabetização que fora estabelecida. Nesse sentido, vale destacar o trabalho invisível que vem acontecendo na Educação, como a criação da Prova Nacional Docente (apelidada de “ENEM dos Professores”). Trata-se do primeiro exame nacional de ingresso na carreira docente concebido para funcionar como uma “peça pronta” que estados e municípios podem incorporar, de forma opcional, aos seus concursos – o que é maravilhoso, acelerando os processos. Ao invés de uma pessoa precisar fazer três ou quatro provas em municípios diferentes, pode se inscrever com base apenas na nota obtida nesta prova, que valerá por três anos.
Além disso, padroniza a aferição de conhecimentos pedagógicos e de conteúdo, hoje muito heterogênea e de baixa qualidade, segundo levantamentos sobre concursos locais; reduz o custo e a complexidade para milhares de prefeituras que passam anos sem abrir seleção, criando um caminho rápido para substituir contratos temporários por efetivos; e gera uma base de dados comparável sobre o desempenho de futuros professores, permitindo retroalimentar cursos de formação e políticas de desenvolvimento profissional. Em resumo, ela ataca ao mesmo tempo a escassez de concursos, a precariedade dos atuais exames e a falta de informações consistentes sobre a qualidade da formação docente.
Para Leonardo Barchini, do MEC, a prova libera pequenos municípios do “gargalo” logístico que os faz empilhar professores temporários. Olavo Nogueira Filho, do Todos Pela Educação, destaca que uma avaliação nacional bem desenhada incentiva as redes a voltar a realizar concursos e, ao mesmo tempo, eleva o sarrafo de qualidade, pois substitui questionários meramente burocráticos por itens que de fato medem capacidade de ensinar. A própria ONG aponta que, combinada a bolsas como o Pé-de-Meia Licenciaturas e à Bolsa Mais Professores, a nova prova cria uma abordagem sistêmica que vai da atração de talentos à entrada na sala de aula, algo que o país nunca teve em escala. Se essa engrenagem se confirmar — e se a prova mantiver rigor técnico — ela pode cortar a rotatividade, reduzir contratações precárias e, sobretudo, sinalizar aos futuros docentes que o Brasil passou a levar a sério tanto a seleção quanto a carreira do professor.
No geral, o MEC vem acumulando acertos; ainda assim, uma análise atenta do seu carro-chefe – o Pé-de-Meia – revela que o desenho poderia ser mais cuidadoso. Em políticas públicas, o diabo – e também o sucesso – mora nos detalhes: quando critérios de elegibilidade, métricas de desempenho e limites orçamentários dialogam, cada real investido gera dividendos em aprendizagem, equidade e mobilidade social; quando esses encaixes falham, até a melhor das ideias vira apenas mais uma linha na planilha, sem tocar a realidade. Por isso, discutir ajustes não é preciosismo tecnocrático, mas a garantia de que programas inovadores sobrevivam às conjunturas políticas, entreguem resultados comprovados e mostrem como o Brasil pode – e deve – gastar melhor para educar melhor.